Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Vogais há muitas (e não se fala cada vez pior)

  
Este artigo do Observador é bem-humorado, mas acaba por cair nalguns erros: sim, a pronúncia portuguesa é muito diferente do aspecto gráfico das palavras, mas isso sempre foi assim (em maior ou menor grau) e muitos destes fenómenos não são recentes. A diferença abismal entre escrita e fala (a tal que nos leva a ler a conjunção «e» como «i» ou «pás» como «paj») é naturalíssima: a oralidade vai sempre muitos séculos à frente da escrita.

Depois, é verdade que esta tendência para perder vogais nos torna incompreensíveis para muitos outros povos — mas nunca acontecerá tornarmo-nos incompreensíveis a nós mesmos, pois a língua tem mecanismos que impedem tal tragédia. Pensem: em qualquer conversa repetimo-nos se não formos compreendidos. Mais uma pista sobre estes mecanismos: nenhum povo deixou de se compreender a si próprio… Estas mudanças não representam desleixo. Representam alterações profundas do sistema vocálico da nossa língua, que não podemos fazer muito para travar (será tão difícil como travar a deriva dos continentes).

O que pode acontecer é chegarmos a um ponto em que se tornará impossível manter a ideia de que o português de Portugal e o português do Brasil são a mesma língua. Mas isso é outra história. Tal como é outra história ser cada vez mais difícil a um espanhol compreender-nos. É um óptimo aspecto do artigo do Observador: lembra os portugueses que os espanhóis não se recusam a compreender a nossa língua — simplesmente não conseguem compreendê-la sem muito esforço (mas na escrita não têm grande dificuldade).

Avançando: de todo o artigo, o maior erro é mesmo a ideia de que a pronúncia de «envèlhecimento» com «e» aberto está errada — ou devia estar errada. Porquê? Sim: o português tende a fechar as vogais átonas. Mas nem sempre. É tão simples quanto isso. Lembrem-se de «padeiro», «actor», etc. 

Neste caso, estamos a criticar os portugueses por falarem… português. A regra genérica que implica o fecho das vogais átonas tem imensas excepções e outras subregras — querer que uma regra da língua não tenha excepções é não perceber o que é uma regra da língua (é um fenómeno cerebral inconsciente que é estudado pela linguística — não é uma lei imposta de fora passível de simplificação ou reformulação consciente).

Para lá do artigo, encontrei também comentários de Facebook que mostram um fenómeno curioso: os portugueses sabem falar português, mas acham quase sempre que todos os outros falam mal português. Há pessoas que criticaram o artigo por insinuar que os portugueses lêem os «ss» como «ch» ou «j» no final de sílaba (o que é verdade). Dizem que isso é um erro imperdoável. Não é um erro: é assim que se fala em Portugal. E não é de agora.

Voltando às mudanças das vogais portuguesas. Não são erros — são fenómenos complexos, inconscientes e imparáveis. O inglês passou por um desses fenómenos (Great Vowel Shift) ali nos séculos antes de Shakespeare — as vogais mudaram todas e afastaram o inglês das outras línguas germânicas. O português europeu está num desses processos, com toda a probabilidade. Irá redundar num afastamento do português europeu do português brasileiro. Num tempo em que se tenta impor uma superficial uniformidade ortográfica, não deixa de ser irónico. 

Bem, por fim, um desabafo. Parece que toda a gente gosta do discurso catastrófico no que toca à língua. Ora, esse discurso que olha para todas as mudanças linguísticas como erros é preguiçoso e simplista. Os portugueses dizem «paj» em vez de «pás»? E depois? Os portugueses dizem «pàdeiro» e «envèlhecimento»? E depois? Qual é a desvantagem de termos um sistema vocálico ainda mais complexo do que parece? Querem mesmo simplificar à força a língua? Boa sorte com isso.

Tenho pena porque este simplismo mata a curiosidade em relação à língua, de tal forma que anda por aí muita gente que se queixa do estado da língua e nem repara que, em português, lemos o «s» como «ch»/«j» em final de sílaba e nem se interessa por saber mais sobre a língua real dos portugueses.

Olhemos com atenção para o português, sem medos nem complexos. A nossa é uma língua riquíssima, com mais ou menos vogais.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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4 comentários
  • O interessante é que quando se trata de erros no português europeu é dito: “Não são erros — são fenómenos complexos, inconscientes e imparáveis” .Já quando o caso é o português brasileiro a coisa muda de figura…. Realmente, brasileiros não falam português…

    • Neste blogue, o caso não muda de figura. O que digo quanto aos fenómenos complexos aplica-se tanto cá como lá: são é fenómenos diferentes. O fechamento das vogais não está a acontecer no Brasil. Em Portugal, é um fenómeno antigo.

  • Mais isso ocorre em Portugal ou em Lisboa? Eu tenho a sensaçom de que os portugeses do norte e os brasileiros têm ũa fala, pronúncia e sotaque semelhantes ós da Galiza. Já os lisboetas… ou os africãos…
    Num primeiro momento, ũa das coisas que mais me surprendou da cançom coa que ganháchedes Eurovisom foi que o cantor pronunciava “talvex” ou “prexes” em vez de dizer “talvez” ou “preces”. Eu pensei que era que o cantor nom sabia falar com jeito. Logo pesquisei na Wikipédia e vi que era de Lisboa. Dessarte, tudo fazia sentido.
    A verdade é que o sotaque lisboeta nom é moi doado de comprender prá ampla maioria dos galegos. Ũa vez foi um portugês ao Land Róber (programa umorístico da Galega) e o Roberto Vilar dige-lhe “Nom me cuspas”. É que parece que estejades a cuspir ou que nom saibades falar. No entanto, os brasileiros já parecem que falam “normal”; coma nós. Idem pros de Braga ou o Porto. Iste critério nom será moi riguroso (dende o ponto de vista científico e acadêmico), mais as sensações e perceções nom entendem moito de “rigor”.
    Eu, issa cançom cantarei-na cum sotaque galego. Mais, bom, isso faço-o sempre; sejam estadunidenses, mexicãs, alemãs ou brasileiras.
    Tamém á que termos em conta ũa cousa: pros galegos ũa fala normal tende a sela madrilenha (ou, nos melhores casos, se ainda os ouver; as da sua aldeia), os portugeses a lisboeta, os ingleses a de Londres…
    Nota: O portugês do que falava que aparecera no Land Róber fora o Pedro Barroso (http://www.crtvg.es/tvg/a-carta/etiqueta/land-rober-tunai-show

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